Papo com a morte
“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.” — Clarice Lispector
Estar de cara a cara com a morte... não é bem como nos filmes. Ela não é sombria, nem cruel. Na verdade, ela é surpreendentemente calma. Uma calma desconcertante, quase sedutora. Como aquele silêncio que vem depois de dias de gritaria dentro da cabeça. Ela te olha, te observa, e não te obriga a nada. Só estende a mão. E por um instante, parece tentador aceitar. É mais fácil que viver. É mais tranquilo que enfrentar os monstros que só você vê. É... silêncio.
Mas, mesmo assim... eu recusei dar a mão a ela.
"A morte do artista: Seu último amigo" By Zygmunt Andrychiewicz
Mas sabe o que me fez não dar a mão pra ela? Não são exatamente promessas de que tudo vai melhorar, nem aqueles clichês de “pense no amanhã”. É mais simples e mais complexo do que isso: são as coisas e as pessoas que EU amo. É o cheiro do café que minha irmã faz por mim pela manhã. É o som das risadas de deixar a barriga doer que ainda acontecem, mesmo nos dias ruins. É aquele abraço que eu ainda não dei. É a voz do meu melhor amigo cantando "O sol e a lua" do kamaitachi e falando que lembra de mim. É o livro que você jurei terminar. É até os meus gatinhos que me espera levantar porque né, eles não sabem abrir a própria ração.
Eu fiquei porque percebi que, embora a morte seja mais silenciosa que a vida, ela também é definitiva demais. Irrevogável. Fria. E no fundo, a dor de existir é cruel, mas é mutável ela se move, ela não some, mas se transformei.
Fiquei por mim. Fiquei pelos outros. Fiquei pela possibilidade remota, improvável, quase ridícula de que talvez, só talvez, um dia isso aqui faça sentido. E mesmo que não faça ainda assim, existem coisas que por algum motivo estranho aquecem o peito no meio desse vazio. Coisas que não cabem na morte. Coisas que só acontecem na vida.
Parece mesmo que morrer resolve. Porque a dor some. O vazio some. A angústia some. Você não sente mais nada. Você não precisa mais existir. Não precisa mais tentar. Não precisa mais fingir que tá tudo bem quando absolutamente tudo parece um prédio desmoronando dentro do peito.
Mas aqui vai uma verdade desconfortável que uma pessoa que é minha luz de anos (Arthur) me disse e que é desconfortável demais pra quem nunca pensou sobre isso, e real demais pra quem já esteve aqui:
Morrer não cura. Morrer só interrompe. E transfere pra quem te ama .
A dor que mora em você, aquela que você carrega no corpo, nos pensamentos, nas madrugadas em que tudo sufoca... ela não some. Ela escorre. Ela escorre pra quem te ama, pra quem nem sabia que te amava tanto, pra quem te queria aqui, mesmo quando você não conseguia perceber isso.
E não, isso não é papo motivacional. Eu não tô aqui pra te encher de frases prontas, nem de clichês sobre esperança. Na verdade, tô aqui pra dizer que viver as vezes dói muito mais do que qualquer coisa que você consiga imaginar. É um rasgo que não fecha. É acordar e se perguntar: “Por quê?”... sem resposta.
E, no meio desse caos, algo me veio à cabeça — uma frase da Clarice Lispector que sempre me atravessa: “Tenho medo de morrer e, no entanto, viver me dói.” E não é exatamente isso? Viver dói. Dói muito. Mas no fim das contas morrer não resolve essa dor. Só transfere. Só espalha ela pra quem fica.
Neste momento eu ainda estou na fase de sobrevivência e não de viver, e sobreviver não é poético. É feio, é remendado, é respirar no automático, é chorar até dormir, é se perguntar se um dia comer, beber água, se levantar da cama vai fazer sentido. Mas também é olhar pra trás e dizer: “Eu não achei que ia chegar até aqui, mas cheguei.”
Então esse texto não é uma carta de despedida. É ironicamente uma carta de permanência. Uma carta pra quem já olhou a morte nos olhos e percebeu que, por mais sedutora que ela pareça, a vida ainda tem coisas que ela não pode oferecer. Tipo brigadeiro. Abraçar alguém que você não vê faz tempo. O cheiro de terra depois da chuva. O abraço que você não sabia que precisava. Receber elogios de algum estranho na rua. A música que toca tão forte que parece que, por três minutos, você não é mais só um corpo pesado, você é som, você é vento, você é qualquer coisa além da dor.
Se você tá lendo isso, você sobreviveu a si mesmo hoje. E eu também.
E olha... isso já é coisa pra caramba.
E é bizarro estar escrevendo isso fora de setembro amarelo. Parece até piada de humor negro: “Olha eu aqui, fugindo do roteiro, escrevendo sobre morte e sobrevivência no mês errado.” Mas a real é que a dor não tem calendário. E o ato de sobreviver também não.
A morte me olhou. Me ofereceu sua mão. E por um segundo, eu quase aceitei.
Mas eu não aceitei.
E se você tá lendo isso, é porque você também não.
A gente ainda tá aqui. E enquanto a vida for esse caos cheio de rasgos, de feridas, mas também de brechas de luz — talvez, só talvez, a gente escolha continuar.



Muito obrigada!!!! MESMO
Obrigado por isso! ❤️